quinta-feira, 16 de novembro de 2023

como es mi vida


Outro dia, rodava por aí um texto sobre o quanto os homossexuais podem ter suas vidas afetivas atrasadas, e isso explicaria a certa fragilidade que há em muitos de nós nesse quesito. Na hora, não fiz paralelo algum comigo mesma, já que desde os 15 anos, se fiquei solteira por dois meses, foi muito. Sou agraciada pela presença de pessoas incríveis com quem cruzei em algum ponto determinado da vida. Mantenho relações sólidas e esclarecida com a maioria delas, grazadeusa, que eu não sou de passar essas vergonhas hetero, tipo climão com ex.

A questão é que, especificamente ontem, do neida, fiz uma reflexão importantíssima sobre mim e minha sexualidade – mas em relação aos seus reflexos na vida profissional.

Veja: que sempre me achei mal alocada nesse setor específico, isso é claro. Mas eu mesma atribuía, por exemplo, à minha alma a little bit inconsistente, à minha imensa curiosidade sobre todas as coisas do mundo e a mania de aprender sempre mais. E também à minha vida amorosa bastante, digamos, movimentada: sempre tive a sensação de que me faltou um pouco a paz de um relacionamento amadurecido e calmo, que me permitisse somente estar e, daí sim, pensar mais em mim, com visão a longo prazo.

A verdade, agora, desde ontem, eu vejo, é que eu sempre, sempre, sempre quis ser médica, desde os primeiros pensamentos, brincadeiras, vislumbres de vida adulta, eu sempre quis estudar medicina. Um dos jogos que mais amei na vida, e que tento muito ainda encontrar por aí para dar de presente às minhas filhas, se chamava “como es mi cuerpo”. Um tabuleiro interativo de anatomia, que explicava a localização e função dos principais sistemas do nosso corpo.

Mas acontece que, aos 16, eu fui atropelada por uma revelação quando entendi que havia algo de muito errado comigo: eu era sapatão. E isso, sem me delongar, meu amigues, foi uma bomba na cabeça de Robertinha. Mas deixo esse capítulo pra uma próxima reflexão. Voltando: nessa época, minha irmã já fazia curso de teatro. E, claro, eu amava entender todo aquele material que ela levava pra casa e ajudar na passagem dos textos, afinal, a leitura – sobre qualquer tema - sempre foi também um lugar de identificação e acolhida pra mim.

Imagina a mocoronga aqui, recém saída de uma escola de playboy e patricinha, toda errada, sem atender sequer ao mínimo das exigência de beleza da adolescente padrão, nerd querendo parecer cool, com uma sexualidade mais confusa que a situação atual do Brasil, vendo aquele tanto de liberdade, de des-vaidade, um mundo de meninas lindas, de meninos poéticos à lá personagens de Milan Kundera, tudo meio bi festinha, whatever, aquele tanto de literatura, de estudo, de aprofundamento sobre a alma humana... pirei.

Embarquei nas artes cênicas, então, para poder de fato vivenciar as sensações que deveriam ser normais e corriqueiras a todo adolescente: tipo o amor, a paixão, o sexo e círculo de amizades. Fui feliz. Pero no mucho. Fui então tentar design de interiores, já que obra e desenho são pequenas paixõezinhas da vida também. Acabei achando tudo meio blé, cansei e fugi pro jornalismo, afinal, havia muita coisa rondando minha cabeça e que precisava ir pro papel. Pensei que a faculdade ao menos me habilitaria a ser uma escritora, alguém autorizada a lidar com palavras. Nessa época, trabalhava numa livraria, nas áreas de literatura infantil e brasileira e na parte de música. Das 16h à meia-noite, fazia amigos, conversava com muitos, ganhava mimos dos clientes mais fiéis que, tenho certeza, chegavam em busca apenas de trocas humanas. Quem não, afinal?

E de lá pra cá foi essa a estrada trilhada: uma profissão que, apesar de admirar demais pela infinita importância, não me apetece. Não me deixa feliz e não me realiza. E diria mais: pior é que me entristece. E como o jornalismo já vivia sua derrocada ali por volta de 2010, quando me formei, o caminho mais óbvio foi seguir pela produção de conteúdo digital. E daí, amigues, baubau. Tchauzinho pra sanidade. Porque somente duas coisas nesse mundo cresceram e se aprofundaram tanto quanto as redes sociais na última década: minha barriga e meu umbigo, nessa ordem.

O mundo das mídias é voraz – e, tá, ok, é entendível e natural essa aceleração imensa. Mas nada me faz entender como em 2013 a gente queimava cd, rs, e que hoje existe – pffff - tudo isso aí de AI, né, que dispensa demonstração.

E, nesse ritmo, chegamos ao cenário atual em que eu, com 39 anos e desempregadíssima, vivo atormentada pela necessidade de ser cada dia mais criativa, dinâmica, multitasking, interada, dona dos paranauê, descolada, jovial, antenada, gata, assídua, aparentemente despretenciosa, tecnicamente habilitada, líder nata, engraçada, de boas com a minha aparência, performática, craque nas 11, conhecedora de rings lights e maquiagem, amiga dos influencer, além de disponível 101% do tempo.

E toda essa tortura você sabe por quê? Porque, na minha cabecinha de adolescente deturpada lá dos anos 2000, que não tinha referência de pessoas lgbtqia+ ocupando todos os lugares – sejam eles na classe artística ou na classe médica – eu precisava trabalhar com arte, novidade, irreverência, precisava entender as piadas, brilhar, sempre brilhar, de repente para comprovar meu valor e minhas virtudes de ser humanos, os mesmos que possivelmente estavam apagados graças a esse meu ‘defeito de fábrica’. E aí que o grande insight da noite de ontem foi esse: de que eu não quero demonstrar genialidade, não quero o cansaço de ter que me provar melhor a cada dia – sendo que a vida em si já é meio isso na sua própria essência, né mesmo. 

Que eu quero ficar quieta, eu gosto de ser quieta, não gosto de alardes, não gosto de competir, não gosto de pressa (e olha que se tem uma coisa que sou é acelerada). Gosto de poucas, mas boas pessoas. Eu falo baixo, penso muito, amo estudar as coisas mais divergentes, entremeando sistema nervoso com ‘quilos mortais’ no youtube, receita nova de pão caseiro com true crime, ando de ônibus só pra ter mais tempo de ler alguma coisa que esteja na bolsa e não precisar conversar muitas vezes com ninguém.

Então, esse texto aqui é uma forma de reconhecer cada passo da jornada, louvar cada tijolo dessa construção que se chama ‘nós’. Pra além da necessidade de cada vez mais filtro solar e exercícios pros joelhos, a velhice traz clareza de pensamento e a paz dos sentimentos, e isso inclui o autoperdão – no meu caso, por ter levado 20 anos pra entender o que queria – e a autoadmiração – por ter seguido meu coração e decidido que era hora de encarar a 4ª faculdade e hoje estudar o que de fato amo e me traz sentido pra vida.

terça-feira, 11 de dezembro de 2018



Uma das coisas mais lindas dos seres humanos é a capacidade de estar à vontade. Seja num lugar, atravessando uma situação, em diferentes grupos sociais ou na companhia de uma pessoa em especial, com quem se divide a vida, filhos, ideias, teto, intimidade ou um copo de cerveja.

Estar à vontade significa se sentir amado, querido, seguro, desejado, whatever: significa sentir que está no lugar exato onde deveria estar – por meia hora, dois dias, cinco anos ou pelo tempo de um abraço que vale pela vida inteira.



terça-feira, 8 de agosto de 2017

9:16. Hoje estou atrasada. Logo eu, que carrego na alma um relógio inglês. A praia tá toda parada e, ainda nem em sua metade, já ouço ao longe o apito da barca em que eu devia estar. Explico. Ontem fiquei doente, e esta noite me dei o direito de dormir por 8 horas seguidas. Necessário, por mais que implique em menos tempo na companhia das minhas filhas pela manhã. Cheguei só na hora do banho. Que maravilha de tempo só nosso! Nem a pirraça de quem já tá com sono, nem as brigas pelo chuveirinho, nem a iminência de um tombo no chão ensaboado dissipam a felicidade que é cuidar delas, do bem-estar, da renovação, durante o banho. Saímos do banheiro e tava frio. A missão era chegar o quanto antes no quarto para enfim se aquecerem. Corremos em tom de aventura. Fechamos a porta. Like everyday, não querem "aquela" fralda, não gostam "daquela" calça e nem vão pra escola com "aquela" blusa. Justamente "naquele" dia, não estão afim "daquela" roupa que escolhi. Mas vão mesmo assim, porque "isso aqui é uma família, e não uma democracia". A hora do sapato é sempre um show à parte. É o croc do Cocó um dia, no outro, vai o tênis. Senta na cadeira, calça o sapato, lembra que não colocou talco, vulgo "sal", tira sapato, levanta da cadeira, vai no balde onde estão todos os outros pares. Vê qualquer coisa no caminho, co-au-quer, e se distrai. Perdemos o foco. Recomeça. Isso x2, ok? Uma vê o carrinho dobrado no canto da cozinha e decreta: quer seguir a bordo dele. Eu digo: querida, vamos de elevador, andando até o táxi. Teimosia e então o apelo, aos prantos, com lágrimas que descem e o corpo que deita em tom de represália, ali, no chão sujo da área: "não quero táxi, táxi não, não quero táxi, táxi não, mamãe". Ok, vamos de helicóptero. Vem calçar o tênis. Nessa hora, o micro dedão do pé ganha a agilidade da asa de beija-flor e me impede, a todo custo, de encaixá-lo, e aos outros dedinhos também, no sapato. "Quer-o-croc-do-cocó!?!?!???", três vezes. E cede. Enfim. Em uníssono, um "quero colo". E seguimos, ludibriando e enrolando as crianças até a chegada do elevador. Capítulo 8 mil: escada da portaria. Elas contam. Ainda em shuffle, mas contam: 1, 5, 8, 2, 5, 8... 10!!!! Não querem mais as mãos das mães, vão sozinhas, apoiadas na parede. Rua. Uma no colo, outra na mão. Temos um ritual de ida até o ponto. Primeiro, olhamos bem para os dois lados e atravessamos correndo. Chegamos ao muro da UFF, bem extenso, onde bate o sol da manhã. Acompanhamos nossas sombras, sacudimos os cabelos balançando os cachinhos molhados ainda, cantamos boi da cara preta enquanto fazemos sombra de chifres na parede. E seguimos assim, de nesga em nesga de luz. Não querem ir de mãos dadas, porque usam bolsinhas onde carregam livros, digo então pra se darem as mãos. Riem, riem muito do próprio desacerto: uma quer dar mãos, outra quer dar braços. Seguem cantando, resolvem dar meia volta e dançar em sentido contrario. Corrijo a rota, lembrando que a meta continua sendo o táxi... ignoram. Anseiam por uma paradinha para investigação da bolsa, acham justo ler o livro ali mesmo na calçada, em meio ao ponto de ônibus que enche e esvazia. Retomamos. "Quero colo", pego. "Quero colo", pego também. Ja são três mochilas, duas crianças, duas bolsas, dois livros, um cavalo marinho e um paninho da Peppa no cabide-mãe. Opa, outra fresta de sol. Precisamos descer e cantar o boi. "Chão". Boi, sombra, chifres. Mãos dadas? Braços dados? Impasse, briga e choro. Colo. Um sono que chega avassalador, o corpo solto no espaço, o bebê que agora tem o peso de um homem de 30 anos deitado em um dos ombros. Mas é a mamãe, tudo bem, ela aguenta... Avançamos 5 passos. O ponteiro correndo e eu me dizendo "vai dar, ok, vai dar". Seguimos. Atravessamos a rua com cuidado. Põe criança, põe a outra. Tira mochila, mochila, mochila, separa dinheiro, lembra de manter a bolsa que o livro vai ser a atração da viagem. Dois, mas só um no alvo do desejo. Discussão. Ok, passou. Vem no colo, vai no chão, não pisa no banco. Ufa, se intreteram. Hora de saltar. Pula por cima de uma, pega bagagem da galera. Pega bebê, pega outro. Pega troco. Dois passos. Um estrondo. Medo, criança travou, não quer mais andar. Quer colo, quer livro no colo. Chegamos à porta da escola. Oi, tia, mostra livro, quer contar a historia que aprendeu no caminho. Volta, dá beijo na mamãe, um abraço desengonçado e com pressa de brincar com os amigos no pátio. Tira sapato, fica a chupeta. Bom dia, queridas, mamãe Juju vem buscar. Viro as costas e ouço aquelas vozezinhas se afastando. Estão entregues, vão batalhar mais um dia de suas próprias vidas, criar suas próprias amizades. Mamãe vai embora, mas a certeza da volta é plena. 

Pego o ônibus atrasada, a praia tá parada. Mas tudo bem, vai dar, vai dar. Relembro os passos até ali. Escrevo, sigo escrevendo até a barca, em todo o trajeto pela baía, sem deixar passar nenhum detalhe, na ida ate o metro, dentro do vagão, salto na praça e as linhas ainda se multiplicam. 

No caminho, encontro uma uma amiga do trabalho, conto a historia da minha vinda pra ela. 

11h em ponto e eu acabo de sentar à minha mesa. Bom, agora, meu dia vai enfim começar. rs rs rs

Este não é um case de sucesso. Mas poderia ser.

sexta-feira, 16 de setembro de 2016

Pó de pirlimpimpim

É incrível o que uma criança faz na vida de gente, né? Além de nos transformar em mães, filhos nos fazem acreditar em fadas, poções mágicas, pó de pirlimpimpim, criaturas encantadas e, apesar disso, nos dão choques de realidade a cada instante, nos ajudando a resignificar pequenas grandes coisas do dia a dia.

Desde o fim de semana, Olívia e Helena têm estado com sintomas clássicos de resfriado: nariz escorrendo durante o dia e entupido de noite. Com os pés nas costas e muito remorso no coração, automaticamente pegamos a latinha de soro fisiológico em jato contínuo e o aspirador nasal. É um mal necessário!

Ontem, as duas jantaram, tomaram banho e mamaram normalmente, com um pouco de choro de cansaço, mas ok. Na hora de colocar Olívia na cama, senti que estava um pouco quente. Como já estava dormindo, deixei. Às 23h10, eis que um choro irrompe do quarto. Era ela, com febre alta. Bem, era 38 graus, mas como não estamos, nem elas nem nós, acostumadas a doenças, aos meus olhos ela ardia.

A noite foi longa. Acordou cedo, mamou metade da mamadeira, quis brincar mas não conseguiu e, de manhã até a tarde, não dormiu nem um segundo. Também não comeu, só chorou. Chorou, fez manha. Chorou mais. E mais. E teve febre. Juntei as coisas e fomos ao hospital. Descrevemos seu estado à médica da emergência. Ela, um pouco reticente, disse que devia ser a congestão nasal a causadora do mal estar. Insistimos na garganta. Dito e feito: foi abrir a boca da criança e declarar “nossa, mas tá muito inflamada!”.

Olivia é o bebê mais alegre que já conheci, mas hoje realmente seu humor é para poucos. Ela só quer colo e chorar olhando nos nossos olhos. Depois de constatada a infecção, Olivia nos mirou como quem pergunta o que passa.

Juliana, com voz maternal e tranquilizadora, respondeu: “pronto, a gente já sabe o que é. Agora é só tratar e ficar boa”. Provavelmente, seu ainda incipiente português não a deixa compreender cada palavra. Mas o tom de voz e as circunstâncias a convenceram de que tudo estaria bem, apesar de ruim naquela hora. Entramos no táxi e ela, na maior segurança do mundo, dormiu no meu colo, aliviada.


aDaí, você para e pensa que, a cada novo problema com o qual esbarramos pela vida adulta afora, o segredo continua sendo saber o que é, tratar e esperar passar.

terça-feira, 3 de maio de 2016

um clique

Semanalmente eu assisto ao programa “Compulsão”, do canal GNT. Tô viciada. Brincadeira. rs É bom, é bem dirigido e vem depois de “Histórias de Adoção”, que também assisto sempre. Mas o que me prende mesmo é que há sempre uma identificação enorme com cada personagem, seja este envolvido com álcool, drogas, compras, jogos.

Desde que parei de beber e de fumar cigarros, há 3 anos, já tive fases: luto, dor, abstinência, saudade, nojo, raiva, tudo isso em loop. Só não tive um sentimento, desde então: o de que, algum dia, mais cedo ou mais tarde, eu iria voltar aos velhos hábitos. Eu me pergunto por que. E me respondo: a qualidade hoje – qualidade do todo – não se paga, não se vende, não se rende.

Eu comecei a beber com 12 anos. E comecei a fumar com a mesma idade. Até hoje não sei o que veio primeiro, mas sei de uma coisa: os dois, o álcool e o cigarro, sempre foram objetos de desejo na minha vida. Na verdade, há um terceiro elemento: o sexo. E, para os três, eu sempre me impus que deveria, apesar de toda curiosidade latente, esperar por uma idade decente para início de consumo. Bem, julguei, ao álcool e à bebida, suficiente os 12. Por vezes me dói lembrar que eu nem ao menos havia menstruado nessa época. Sexo foi relativamente cedo também, mas só aos 15.

O que aconteceu dos meus 12 até meus quase 29 anos foi uma sucessão de erros, de cenas lastimáveis, de porres homéricos, de perda da inocência, de envolvimento precoce com mundos para os quais eu ainda não estava exatamente preparada, de revolta interna calada, de dor velada. Foi tudo isso? Sim. Foi somente isso? Não. Absolutamente não. O que aconteceu nesse intervalo de 17 anos foi, única e somente, a minha vida. O meu crescimento, as minhas descobertas, minha formação de caráter, minhas conquistas, meus anseios, meu amores, minhas emoções.

Volta e meia, me pego relatando à minha mulher, também abstêmia há 6 anos, episódios de bebedeira. Ela, que também tem problemas com álcool, se horroriza. O mais curioso é que me soam tão naturais, me veem com tanta nitidez à memória, que parte da minha surpresa vem da surpresa de quem me ouve.

Dia desses, estávamos numa festa e tocou “Kiss me”, essa música lindinha do Sixpence None The Richer. E eu me lembrei da vez que eu e minha amiga de infância e vizinha fomos parar numa festa no morro que ladeava nosso bairro. Como chegamos lá, acho que me lembro: provavelmente com os pais ou o tio dela, que era o primeiro na linha sucessória do Presidente (da Boca de Fumo), um amigo íntimo da família. A questão é que começamos a beber vinho roxo e certamente pedimos para ficar mais um tempo. No que fomos atendidas. Eu devia ter uns 13 ou 14 anos na época.

Nesse dia, eu fui chamada a atenção pela Cacá. Abre parênteses: Cacá é dessas pessoas de muito coração e pouca estrutura para emoções. Sempre fomos grudadas. E ela muito dependente de mim. Fecha parênteses. Bem, nesse dia, foi ela quem me avisou que alguns moradores do morro não estavam gostando muito da minha performance na quadra de areia. Eu dançava a música “NumberOne”, da Alexia, marcando o chão com meus pés. E comecei, por euforia do álcool, a repetir muito aquele movimento, um semicírculo em passos para trás. Se eu fosse confiar na minha memória, diria que permaneci assim por meia hora. Mas deve ter sido por 4 minutos, tempo suficiente para provocar muitos olhares.

*Ui, acabo de lembrar que comi angu com sarapatel também. Deixa pra lá!*

No fim da festa, descemos para casa, de carro, de carona com alguém. E no rádio tocava a tal “Kiss me”. E eu cantava “so fuuuck me” e morria de rir e chamava a atenção de Cacá pra que visse a grande sacada que eu estava tendo com o trocadilho. Fui repreendida. Senti medo, lembro. Me senti exposta e tive vergonha.

Cheguei em casa e pluft. Só me lembro do banheiro social, que era revestido por azulejo marrom escuro, todo azul no entorno do vaso sanitário, e o cheiro insuportável de azedo. Era a mistura do meu vômito roxo com a coloração belíssima do chão. Ainda de madrugada, ou pela manhã, bem cedo (sempre sofri de euforia alcoólica), limpei tudo. Não sei se alguém percebeu. Até hoje.

Daí, no dia seguinte a este relato feito à minha mulher, eu voltava da farmácia e desenvolvia um pensamento, talvez o gatilho deste texto. Era uma simulação de conversa entre nós. Uma conversa real já iniciada, noutro dia, mas não finalizada. Assistindo ao programa da GNT, certa vez, eu disse que achava que não teria problema em tomar uma cerveja um dia, mas que a opção não se aplicava ao cigarro, vício que considero bem mais agressivo.

Ela, em tom de surpresa e certa revolta, perguntou: “ah, então você acha que não tem problema com álcool??”. Eu disse que sim, tenho, claro. Mas que minha compulsão não tendia ao exagero de consumo. Até me levava a isso, sim, mas que não era esse o mote. Mas do papel que a bebida exercera na minha vida: tão estrutural quanto a minha própria vida.

Quis dizer que meu alcoolismo é perigoso porque ele tem a minha idade. Crescemos juntos. Descobrimos o mundo juntos. Estivemos juntos quando precisamos tomar grandes decisões e sentir grandes dores e pungentes amores. Escrevemos juntos. Nos amamos, nos ferramos. Nos ludibriamos mutuamente. Éramos apaixonados. Daqueles pares que se matam mas não se separam: se perdoam porque se conhecem.

Como separar duas vidas? O álcool era o outro. Na verdade, ele era eu. Um eu com álcool. Um eu com coragem, personalidade. A Roberta não havia, não se via quase nunca. A Roberta era sem graça, não tinha cor. A Roberta era antissocial, gostava de casa, não gostava muito de si, se achava feia, gorda, fora de contexto. Quem respondia pela Roberta era a personalidade alcoólica que se desenvolvera ao longo de anos.

Era essa mesma personalidade a que se destruía com prazer de um cigarro. De vários. Sim, com cigarro não havia limites. Era mesma que traía as namoradas. Que ia dormir amando alguém, acordava sentido um clique na cabeça que a desconectava do coração e precisava, então, na sequência, terminar aquele namoro, que, não, nunca havia dado certo – e “era tão evidente que não temos nada a ver!!”.

Não havia certeza. Aliás, eu não tinha certeza das minhas certezas. Não podia confiar em mim mesma. Nem na memória, nem no compromisso com a realidade, nem no futuro, nem nas minhas reações e nem podia predizer, tinha pavor!, o que iria fazer no fim de semana. Nítida a insegurança? Triste.

Hoje eu olho e vejo tristeza no meu passado, mesmo que eu seja leonina e não goste de admitir que sinto tristeza e me penalizo por mim. Por tantos anos de submissão a um elemento externo que tentava preencher algo interno que andava perdido. Era um jeito de escapar do compromisso de ser.

Tenho quase 32 anos, duas filhas e um casamento batalhado dia a dia, como deve ser. Tenho uma mãe, uma irmã, e tento manter nossas relações, na medida do possível, em dia. Não tenho mais culpa em achar que não estou performando bem como filha ou como mulher ou como irmã, vez ou outra. Agora eu sei que eu sou humana e que erro bastante. Não preciso me vender. Não preciso ter dinheiro pra comprar. Não quero estar ou me sentir por um fio de nada.

Essa frase: talvez o meu grande estalo na vida, aquele que motivou essa segurança quanto ao risco de recaída, tenha sido uma frase que Juliana me disse logo que nos conhecemos e já discutíamos. Sempre me refiro a este dia, porque, nem ela sabe, o quão importante foi. Ela disse: “Eu não te amo por um fio. Eu te amo porque você é você”. E foi como se caísse um jarro de água fria, seguido de um “acorda, moça” bem sonoro, na minha testa num dia de calor. Foi um alívio instantâneo. Foi – arrisco dizer – deus, tal qual existir no coração e na alma de cada um, me dando uma nova vida. Foi meu reencontro comigo, com a Roberta adolescente que tentava morrer aos poucos sem ser notada, mas que precisava de ajuda e amparo.

Não digo que meu passado, meus amores, minhas paixões, minhas solidões, meus risos, foram todos mentira. Jamais. Eles foram ilusórios, de certa forma. Eles foram performáticos. Eles buscavam redenção, aprovação e inclusão. É clichê, é jargão, mas é verdade: nada vale mais do que a consciência tranquila de quem não deve sentimento a ninguém, muito menos a si próprio.




*me perdoem o texto jogadão, mas ele veio assim, inteiro, nessa ordem, e precisou sair às pressas. 

terça-feira, 19 de abril de 2016

vamos de neruda

amor,

não deixe que a mítica política
transforme seu dia numa poesia raquítica
há mais o que viver
e – acredite – menos o que possamos fazer

a luta é diária e sempre será
a felicidade é aqui e por ela vale lutar
não se contamine, se ilumine
se nos ajuda, vamos de Neruda:

“se nada nos salva da morte, pelo menos que o amor nos salve da vida”

quarta-feira, 23 de março de 2016

A mamãe quer cuidar bem de você

Essa foi a última frase que eu disse hoje, enquanto colocava uma das gêmeas para dormir. O trecho faz parte de uma conversa quase diária que tenho com as minhas filhas, desde que nos mudamos e suas camas passaram a ser no chão, onde geralmente nos deitamos juntas.

Poucos sabem, mas a hora de dormir aqui em casa pode ser um suplício. Eu sei que em outros casos, com crianças maiores, a operação chega a durar uma, duas horas. Acontece que minhas pequenas ainda não completaram 10 meses e eu já demonstro, por vezes, tanta falta de paciência.

Toda mãe passa por isso, eu acho. Mas sempre achei também que eu não passaria. Sempre confiei na minha pedagogia de nascença. Sempre me achei uma pessoa paciente e muito bem humorada diante das intempéries, principalmente infantis.

Mas não: quebrei a cara. A cada noite em que dormir se tornar tarefa árdua, como hoje, me sinto frustrada, desamparada, desequilibrada, péssima mãe, do tipo que a Supernanny repreende do início ao fim do programa.

Sabendo que o sono é quem esta no comando daquele pequeno ser que teima em não admitir o corpo inerte na cama, às vezes, eu insisto em mantê-lo na horizontal, na tentativa de fazer com que entenda que todos seus incômodos serão sanados com a chegada aconchegante do soninho. Por isso, às vezes, também acabo me excedendo na insistência e, com a falta de paciência e o cansaço de um dia inteiro que já dura 9 meses, na força com quem tento dominar aquele corpinho de nem 8kg. É saculejo, pega daqui, resgata de lá, ajeita acolá, que nem sei. Resultado: neném estressado, mãe mais ainda.

É nessa hora que o choro vem. Vem forte, silencioso, queimando por dentro pra não virar mais um motivo de distração pra menina, já tão desfocada do descanso. E vem por vários motivos: sem meias palavras, da raiva, da impotência, do descontrole, da covardia, do arrependimento e, por fim, da culpa de olhar praquela criança que só deseja ficar acordada, sentadinha na cama, mexendo em seus bichinhos por um tempo a mais daquele estipulado previamente por mim.


E então chega a hora da minha conversa sem som, ao pé do ouvido dela, que tem mania, desde que nasceu, de dormir mexendo na nossa mão. Entre pedidos de desculpas e para que deixe o sono chegar e até promessa de que vamos dormir agarradinhas essa noite, uma cabeçada do neném que ainda não encontrou a posição certa pra relaxar. Recomeço a prece. Ela vai cedendo e o sono, se instalando.

Daí o jogo se inverte. Ela fecha os olhos e parece não ligar mais pro que eu falo. Parece até querer que eu me cale. Eu, então, explico, agora com mais calma e carinho, que a mamãe fica cansada e que sabe que ela está com sono. Que agora não é mais hora de brincar, que a Liliva tá dormindo e não merece ser acordada. Que a mamãe tem 31 anos, mas que se sente adolescente em alguns momentos. E a mamãe fala isso olhando pro espelho fixado na parede. De fato, mamãe tem cara de adolescente e ela mesma demora a acreditar que tem duas filhas. Digo também que mamãe não quer mais brigar na hora de dormir e nem durante o dia: quer se entender com a neném.

Enfim, que "a mamãe quer cuidar bem de você".

Meu coração de mãe que encontra sinais em todos os gestos, jeitos e sons, me faz acreditar que minhas confissões foram ouvidas quando, ao tentar me levantar, sua mãozinha segura forte a minha, como quem diz "vamos ficar bem".

E segue o jogo.