Outro dia, rodava por aí um texto sobre o quanto os homossexuais podem ter suas vidas afetivas atrasadas, e isso explicaria a certa fragilidade que há em muitos de nós nesse quesito. Na hora, não fiz paralelo algum comigo mesma, já que desde os 15 anos, se fiquei solteira por dois meses, foi muito. Sou agraciada pela presença de pessoas incríveis com quem cruzei em algum ponto determinado da vida. Mantenho relações sólidas e esclarecida com a maioria delas, grazadeusa, que eu não sou de passar essas vergonhas hetero, tipo climão com ex.
A questão
é que, especificamente ontem, do neida, fiz uma reflexão importantíssima sobre
mim e minha sexualidade – mas em relação aos seus reflexos na vida
profissional.
Veja:
que sempre me achei mal alocada nesse setor específico, isso é claro. Mas
eu mesma atribuía, por exemplo, à minha alma a little bit inconsistente, à
minha imensa curiosidade sobre todas as coisas do mundo e a mania de aprender
sempre mais. E também à minha vida amorosa bastante, digamos, movimentada: sempre
tive a sensação de que me faltou um pouco a paz de um relacionamento amadurecido
e calmo, que me permitisse somente estar e, daí sim, pensar mais em mim, com
visão a longo prazo.
A verdade,
agora, desde ontem, eu vejo, é que eu sempre, sempre, sempre quis ser médica,
desde os primeiros pensamentos, brincadeiras, vislumbres de vida adulta, eu
sempre quis estudar medicina. Um dos jogos que mais amei na vida, e que tento
muito ainda encontrar por aí para dar de presente às minhas filhas, se chamava “como es mi cuerpo”. Um tabuleiro interativo de anatomia, que explicava a localização
e função dos principais sistemas do nosso corpo.
Mas acontece que, aos 16, eu fui atropelada por uma revelação quando entendi que havia algo de muito errado comigo: eu
era sapatão. E isso, sem me delongar, meu amigues, foi uma bomba na cabeça de
Robertinha. Mas deixo esse capítulo pra uma próxima reflexão. Voltando: nessa
época, minha irmã já fazia curso de teatro. E, claro, eu amava entender todo
aquele material que ela levava pra casa e ajudar na passagem dos textos,
afinal, a leitura – sobre qualquer tema - sempre foi também um lugar de identificação
e acolhida pra mim.
Imagina
a mocoronga aqui, recém saída de uma escola de playboy e patricinha, toda
errada, sem atender sequer ao mínimo das exigência de beleza da adolescente
padrão, nerd querendo parecer cool, com uma sexualidade mais confusa que a situação
atual do Brasil, vendo aquele tanto de liberdade, de des-vaidade, um mundo de
meninas lindas, de meninos poéticos à lá personagens de Milan Kundera, tudo meio bi festinha, whatever, aquele
tanto de literatura, de estudo, de aprofundamento sobre a alma humana... pirei.
Embarquei nas artes cênicas, então, para poder de fato vivenciar as sensações que deveriam ser normais e
corriqueiras a todo adolescente: tipo o amor, a paixão, o sexo e círculo de amizades. Fui feliz. Pero no mucho. Fui então tentar design de interiores, já que obra e desenho são pequenas paixõezinhas
da vida também. Acabei achando tudo meio blé, cansei e fugi pro jornalismo, afinal, havia muita coisa
rondando minha cabeça e que precisava ir pro papel. Pensei que a faculdade ao
menos me habilitaria a ser uma escritora, alguém autorizada a lidar com palavras. Nessa
época, trabalhava numa livraria, nas áreas de literatura infantil e brasileira
e na parte de música. Das 16h à meia-noite, fazia amigos, conversava com muitos, ganhava
mimos dos clientes mais fiéis que, tenho certeza, chegavam em busca apenas de trocas
humanas. Quem não, afinal?
E de
lá pra cá foi essa a estrada trilhada: uma profissão que, apesar de admirar demais
pela infinita importância, não me apetece. Não me deixa feliz e não
me realiza. E diria mais: pior é que me entristece. E como o jornalismo
já vivia sua derrocada ali por volta de 2010, quando me formei, o caminho mais
óbvio foi seguir pela produção de conteúdo digital. E daí, amigues, baubau. Tchauzinho
pra sanidade. Porque somente duas coisas nesse mundo cresceram e se aprofundaram
tanto quanto as redes sociais na última década: minha barriga e meu umbigo, nessa
ordem.
O mundo
das mídias é voraz – e, tá, ok, é entendível e natural essa aceleração imensa. Mas
nada me faz entender como em 2013 a gente queimava cd, rs, e que hoje existe – pffff
- tudo isso aí de AI, né, que dispensa demonstração.
E,
nesse ritmo, chegamos ao cenário atual em que eu, com 39 anos e desempregadíssima,
vivo atormentada pela necessidade de ser cada dia mais criativa, dinâmica, multitasking,
interada, dona dos paranauê, descolada, jovial, antenada, gata, assídua, aparentemente
despretenciosa, tecnicamente habilitada, líder nata, engraçada, de boas com a
minha aparência, performática, craque nas 11, conhecedora de rings lights e
maquiagem, amiga dos influencer, além de disponível 101% do tempo.
E toda
essa tortura você sabe por quê? Porque, na minha cabecinha de adolescente
deturpada lá dos anos 2000, que não tinha referência de pessoas lgbtqia+
ocupando todos os lugares – sejam eles na classe artística ou na classe médica –
eu precisava trabalhar com arte, novidade, irreverência, precisava entender as
piadas, brilhar, sempre brilhar, de repente para comprovar meu valor e minhas virtudes de ser humanos, os mesmos que possivelmente estavam apagados graças a esse meu ‘defeito de fábrica’. E aí que o grande
insight da noite de ontem foi esse: de que eu não quero demonstrar genialidade, não
quero o cansaço de ter que me provar melhor a cada dia – sendo que a vida em si
já é meio isso na sua própria essência, né mesmo.
Que eu
quero ficar quieta, eu gosto de ser quieta, não gosto de alardes, não gosto de competir,
não gosto de pressa (e olha que se tem uma coisa que sou é acelerada). Gosto de
poucas, mas boas pessoas. Eu falo baixo, penso muito, amo estudar as coisas mais
divergentes, entremeando sistema nervoso com ‘quilos mortais’ no youtube, receita nova de
pão caseiro com true crime, ando de ônibus só pra ter mais tempo de ler alguma
coisa que esteja na bolsa e não precisar conversar muitas vezes com ninguém.
Então,
esse texto aqui é uma forma de reconhecer cada passo da jornada, louvar cada
tijolo dessa construção que se chama ‘nós’. Pra além da necessidade de cada vez
mais filtro solar e exercícios pros joelhos, a velhice traz clareza de pensamento
e a paz dos sentimentos, e isso inclui o autoperdão – no meu caso, por ter
levado 20 anos pra entender o que queria – e a autoadmiração – por ter seguido
meu coração e decidido que era hora de encarar a 4ª faculdade e hoje estudar o
que de fato amo e me traz sentido pra vida.